RELATO: O nascimento

Baixinha, magra, de cabelos curtos e enrolados. Menina, espoleta, moleca, estilosa… Morena, Marina, escandalosa e alegre. Queria fazer moda, mas é metade jornalista, com olhar para fotografia. Completamente livre (ou desejava ser). Cineasta, curiosa. Tinha apenas 20 anos quando decidiu mudar. E mudou. Estava perdida, se encontrou. Largou família, amigos, casa e a vida campineira. Deu boas vindas ao mundo. Sim… ao mundo. Morou em dez países em menos de cinco anos. Lavou louça, foi garçonete, passeou com cachorros, pegou carona em caminhões… Se aventurou com apenas uma mochila nas costas. Se desconectou do mundo confuso, da correria, do capitalismo. Largou a vida comum por uma melhor e mais saudável. Se desligou das redes sociais, fez email novo. Sumiu… desapareceu por um tempo, “reapereceu” por poucos dias e desapareceu novamente. Não deixou rastros, mas deixou lembranças, saudades. Viveu, sobreviveu, reviveu. E vive agora uma nova vida, uma nova fase. Escreve uma história inédita com dois novos protagonistas: Dennis, seu “namorido”, e Kai, seu pequeno príncipe recém nascido…

pé kaiOslo, Noruega.

Dia 29 de setembro de 2013, 9 horas da manhã. Em uma das suítes espaçosas, nos preparávamos para o momento que mais havíamos esperado nos últimos nove meses. Em um canto, uma banheira enorme, e no outro, uma cama igualmente grande. O espaço vazio entre elas me permitia andar, dançar e até mesmo rolar em uma bola inflável. No banheiro havia várias toalhas limpas e as barras de metal na parede do quarto me possibilitavam abaixar para amenizar a dor. Era a casa de parto humanizado, que me recebera de braços abertos depois de sete horas de contrações.

Senti-me acolhida desde o primeiro momento. Velas, incenso e música eram permitidos para que fosse criado o ambiente ideal, que me fizesse sentir o mais confortável possível. Criei meu próprio ritual: rebolei, fiz poses de yoga e tentei abrir a minha pélvis o máximo possível. A cada contração, uma nova meditação, que me fazia lembrar que estava cada vez mais perto de conhecer meu filho. Dennis fazia questão de me lembrar que a dor era um presente, um passo a mais a caminho do nosso bebê.

O barulho sutil de floresta, chuva, trovão e ondas do mar saíam das caixas de som e me acalmavam. Estávamos sós, exatamente como havia pedido para as parteiras semanas antes, durante um questionário, com o qual pretendem saber qual a reação da futura mãe sob pressão, dor, medo ou ansiedade, para poderem assim, te respeitar durante o parto.

As plantonistas entravam no quarto apenas para checarem o batimento cardíaco do bebê, além de medirem minha pressão e a abertura de minha cérvix, o que acontecia a cada duas horas. O homem que desejei que estivesse comigo o tempo todo, manteve o positivismo durante o trabalho de parto, respeitou meus sentimentos e as minhas vontades. Trazia-me iogurte, nozes, suco de maçã, e respirava fundo comigo em cada contração, como se também carregasse um filho na barriga. Deu-me a certeza de não estar sozinha, a sensação de companheirismo e compaixão. A voz no meu ouvido me acalmava ainda mais: “Você está indo muito bem, estou orgulhoso de você”…

Contração. Sinto a dor aumentar. Contração novamente… está doendo! Um minuto e meio depois, ela volta… não me deixa mais descansar. Elas já vinham a cada 90 segundos, e a dor beirava o insuportável. Era a mais forte e intensa que havia sentido na vida.

Pernas fracas, trêmulas. Comparo com uma cólica menstrual 100% mais intensa. Grito… Não consigo mais verbalizar, raciocinar e nem ao menos abrir os olhos durante toda a contração. Não existe mais vergonha, personalidade nem privacidade. Sinto-me parte da natureza, me identifico mais com um mamífero selvagem que com um ser humano…

Não existem mais modos… ando pelada pelo quarto e a cada cinco minutos, apoio na parede, na cama ou mesmo no chão e não grito, uivo… sim, uivo como um lobo na mesma onda da dor da contração, começando sutil e crescendo, crescendo… Naquele momento, soltar as cordas vocais me ajudava a passar pela dor e a manter a respiração lenta.

Quem passasse pelo quarto, podia pensar até que tivesse gemendo de prazer. Mas do lado de cá da porta eu estava pelada, no chão e de quatro, me curvando como um gato e gemendo como uma loba. Eu não planejei isso, mas quem disse que tinha controle sob o meu corpo? Ele fazia tudo sozinho, nessas horas, sabe o que fazer.

Era difícil, mas tentava me concentrar no motivo daquela agonia e logo percebi que não há sofrimento quando se está colocando uma vida no mundo… Eu estava tendo um filho! Meu, nosso…

Quando a dor estava muito forte, tentava imaginar meu bebê descendo pelo canal vaginal e falava “Yes, yes” ao invés de “No, no”. Pode parecer não fazer o menor sentido, mas fazia a maior diferença. Quando rejeitamos a dor, nossos músculos ficam rígidos, não progredimos e a cérvix não abre. Mas quando respiramos durante a dor sem contrair o corpo, ficamos em sintonia com o que está acontecendo ali embaixo, no canal vaginal.

Antes de entrar naquela casa de parto, foram muitas as páginas lidas, relidas e estudadas sobre o assunto. Eu sabia exatamente o que fazer na hora. Descobrira que a maior parte do esforço é psicológico e que a cada contração eu teria que me focar em transformar a sensação de dor em algo tolerável, dando lugar ao prazer com o poder da mente.

Durante toda a gestação, continuei com os cuidados que já tomava para a minha saúde, mas agora, também pensava no meu bebê. Frequentava as aulas de yoga de três a quatro vezes por semana até o último dia de gravidez, nadava na piscina por 1 hora e meia e me alimentava apenas de comida orgânica. Nunca fui fã de hospitais, médicos ou medicamentos. Não lembro nem mesmo a última vez que tomei remédios ou fui a um hospital.

Sou grande admiradora da vida tribal e convencida de que o nosso corpo é um forte instrumento capaz de curar-se por si próprio, de aguentar muito mais do que imaginamos. Para mim, não havia outra opção se não o parto humanizado, uma forma de conectar-me com a natureza, com o meu instinto natural e comigo mesma. É um parto menos agressivo para mãe e para o bebê, trazendo também confiança, autonomia, autoestima e poder materno.

Muitas mulheres desacreditam no poder que têm, se redimem, duvidam de si próprias… somos os únicos mamíferos que sentem essa dúvida e medo em dar a luz para um filho. Mas eu confiava no meu corpo, na minha saúde, força e ideologia. Queria vivenciar a batalha, a dor crua, o momento único. O dia mais importante e, contraditoriamente, o mais doloroso da vida de uma mulher.

Dennis me ajudou muito e assistiu a documentários sobre parto humanizado, aprendendo qual era o papel dele. Eu queria ficar sozinha e ele me deixava, precisava de ajuda e ele aparecia. A contração trazia dores fortes não só no abdômen, mas também na lombar. E era ali que ele, o homem que eu havia escolhido para ser o pai do meu filho, massageava em cada contração. Minha pele chegou a descamar, ficando em carne viva, mas era necessário.

Meu trabalho de parto, sem drogas ou anestesia, durou mais de um dia. Vinte e seis horas e apenas três centímetros de dilatação na cérvix. Eu tentava me convencer de que era normal na primeira vez, mas as parteiras não gostavam do que viam. Observando minhas contrações, diziam estarem muito fortes e que já eram para ter empurrado o bebê, mas a cabeça dele não estava encaixada no meio da pélvis, mas de lado para a esquerda, o que impossibilitava que o meu pequeno descesse.

As contrações continuavam e meu corpo sentia que já estava na hora de entregar meu filho, mas ele estava “empacado”. O clima foi ficando cada vez mais tenso, e as parteiras, preocupadas com a minha saúde. Preferi aguardar mais uma hora, com contrações fortíssimas a cada 5 minutos, porém não tive nem mesmo um centímetro a mais de dilatação. Como as contrações não ajudavam em mais nada, senti como se estivesse sendo torturada.

O hospital ficava no prédio ao lado da casa de parto, mas era domingo de madrugada e demorou cerca de três horas para o médico chegar. No quarto, Dennis e as duas parteiras me ouviam, desesperados, gritar. “Parem de ficar me olhando, façam alguma coisa! Me ajudem!”. Ele se sentia frustrado por não poder me ajudar, impotente por apenas me ver sofrer. Eu já estava quase sem consciência. Decepcionada… Era o fim do sonho em dar a luz ao meu filho de forma natural, em uma banheira.

Não conseguia me levantar, andar, nem mesmo sentar. Na maca, fui carregada de quatro por um corredor inteiro, no qual ecoavam meus gritos de dor. Eu era apenas mais uma indo para uma sala de cirurgia… Sim… para mim não existiu parto. O que houve não passava de uma operação. Pulseira no pulso com o meu nome, data de nascimento e tipo sanguíneo. Virava um número naquele local, deixava de ser eu, o momento único que tanto esperara, fora arrancado de mim.

Fui submetida à cesárea, à última opção, ao método de urgência. Uma, duas, três, quatro, cinco, seis, sete agulhas! Fios eletrônicos, soro, sangue colhido e peridural na coluna. Não pude impedir, não fui informada… estava fraca, exausta, sem dormir. A pressão caiu juntamente com meu batimento cardíaco e o do bebê que reduziu em menos de dois segundos, de 168 para 60.

Não ouço mais nada, enxergo apenas borrões, tudo ficou branco. “Dennis, estou ficando cega e surda!!”. Um botão vermelho na parede foi acionado e mais quatro médicos vieram me ressuscitar.

O trabalho de parto já completava 30 horas e nem um centímetro a mais de dilatação. A médica que veio em minha direção, estourou a bolsa de água manualmente e me encaminhou para a sala de cirurgia.

O nascimento

Dia 30 de setembro de 2013. Estou anestesiada. Não consigo mexer nenhuma parte do meu corpo a não ser meus olhos. Impossível até mesmo virar a cabeça para ver o rostinho dele, mas ouço de longe que é um menino. “Com quem ele se parece? Como ele é??” Estava curiosa, ansiosa e frustrada… Queria abraçá-lo, acalmá-lo, mas não conseguia nem mesmo demonstrar isso. Chorei muito por não poder segurar meu filho, por não poder viver o momento que esperei por nove meses. 10132745595_a548095787_c

Trinta minutos depois começo a sentir meu corpo formigar. Era hora de conhecê-lo de perto? Peço para que o Dennis traga-o para mim. Sinto agora ele em meus braços, abraço aquele pequeno ser e sinto o cheiro dele… A bochecha toca a minha. “Meu filho!!”, me emocionei com as minhas próprias palavras. Choro de alívio, alegria e vitória.

Kai

Dennis olhava nos olhos do nosso filho, enquanto o segurava nos braços uma hora após o nascimento. “O nome dele é Kai”, disse. Eu sorri e aprovei.kai e pai

Durante toda a gravidez, realizei exames para acompanhar seu crescimento, mas preferi não saber o sexo, assim era melhor. Não me importava se viesse menina ou menino, pois amaria ambos da mesma maneira. É mais emocionante manter a surpresa, do jeito natural … pelo menos era assim quando não havia ultrassonografia.

Kai nasceu com 50 centímetros e 3,7 quilos. Estou extremamente emocionada e absolutamente apaixonada. Não consigo descrever a sensação… é um amor muito forte e intenso. A cicatriz de cesárea ainda dói e a história do nascimento ainda me emociona muito.

Mas foi do jeito que foi. Tudo o que eu queria está agora aqui em meus braços, então estou grata e me recuperando da experiência. Gostaria, eu mesma, de ter sido as primeiras mãos a tocar meu filho, a trazê-lo direto ao meu peito, sentir vitoriosa junto com meu bebê e poder falar “nós conseguimos, nós dois fizemos isso acontecer”.

ma e kai*Esse texto foi resultado de uma entrevista com Marina Vieira, a sapeca, moleca, menina, que agora virou mulher.

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2 Respostas para “RELATO: O nascimento

  1. Bianca Ferreira

    Que história densa, que emocionante saber que deu tudo certo, que momento único! Realmente, nunca mais ouvi qualquer notícia sobre a Marininha, mas é estranho constatar que ela levou justamente a vida que eu podia imaginar que levaria. Um exemplo e inspiração, a menininha virou mulher! Parabéns, saúde e muita paz na nova vida que se inicia! 🙂

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